“Acreditávamos que finalmente o Brasil tinha se encontrado na democracia, pois havia um acordo básico de como a política, no sentido da administração institucional da vida econômica social e cultural, deveria ser conduzida. Um redondo engano!”, disse o professor Carlos Sávio Teixeira, da Universidade Federal Fluminense (UFF), na quinta-feira, 24, em sua palestra na terceira e última parte do ciclo de debates “Desenvolvimento, Sociedade e Intervenções Governamentais”, promovido pela UFBA.
A sessão no PAF III, campus de Ondina, com palestras também dos professores José Crisóstomo de Souza e Pedro Lino de Carvalho Júnior, ambos da UFBA, concentrou-se em algumas “Interpretações da sociedade brasileira”, numa busca por um melhor entendimento da crise em que o país se encontra mergulhado.
Carlos Sávio Teixeira abordou uma tese que vem elaborando nos últimos seis meses a respeito do pensamento social e político brasileiro. “Meu objetivo é entender um pouco a crise profunda, especialmente pelo grau elevado de desorientação que ela trouxe”, disse. Para chegar a uma resposta, ele examinou três grandes correntes de pensamento sobre a vida social no país, o construtivismo institucional, o liberalismo culturalista e o estruturalismo sociológico. As duas últimas seriam responsáveis pela atual crise, pois, “por caminhos diferentes, seus autores não gostam do Brasil, seja conscientemente ou não”.
Teixeira, apoiado no pensamento de Gilberto Freire, lembrou que o poder patriarcal do dono da terra era muito forte no Brasil e não era contestado porque a igreja ficava dentro da fazenda, o que ele considera “impressionante” do ponto de vista histórico. “Então, a tese dos construtivistas institucionais autoritários da primeira geração era de que a única instituição capaz de fazer frente a essa dinâmica perniciosa seria o Estado”, explicou.
Cientista político, Teixeira considera que “as grandes instituições que marcam até hoje a coluna vertebral da sociedade brasileira” são resultado da ação intelectual e política do construtivismo institucional. “Transformaram uma fazenda de café, que era o Brasil, na oitava maior economia do mundo, e isso não é pouca coisa”, avaliou.
O Visconde de Uruguai, no século XIX, e Francisco José de Oliveira Viana, Azevedo de Amaral, Alberto Torres e o ideólogo do Estado Novo, Francisco Campos, no século XX, foram alguns autores dessa corrente teórica citada por Teixeira. “Todos eles acreditam que o Estado pode reorientar radicalmente a história e usam, de alguma maneira, a noção de estrutura, até mesmo de capitalismo, mas nenhum deles entende o capitalismo como teoria social a exemplo de Marx, Weber e Durkheim, ou seja, como metaestrutura, uma totalidade que tem uma lógica profunda”, disse, acrescentando que esta seria a diferença fundamental entre o construtivismo institucional e as outras duas outras correntes.
Teixeira também relacionou os autores do construtivismo institucional que abraçaram a democratização socioeconômica como forma de mudança social e estavam ligados ao chamado trabalhismo histórico brasileiro. “No sentido prático e político, os pensadores se obrigaram a colocar a mão na massa, eles saíram do campo das ideias e foram testá-las no mundo institucional e político”, disse.
Como exemplo, citou Guerreiro Ramos, deputado federal pelo Partido da Democracia Brasileira (PDB), Darcy Ribeiro ministro chefe da casa civil e Celso Furtado, ministro de planejamento, ambos no governo de João Goulart, Inácio Rangel, assessor econômico de Getúlio Vargas e Oliveira Viana, responsável pela legislação trabalhista, “que está sendo agora cassada no Brasil”.
O golpe de 1964, além de outras consequências nefastas ao país, segundo Teixeira, teriam contribuído também para a grave desarticulação do sistema partidário nacional, fortalecido entre os anos de 1945 e 1964. Esse sistema “girava em torno de Vargas, contra ou a favor, e tinha raízes profundas, algo que o sistema partidário na redemocratização nunca conseguiu ter. Com exceção parcial dos Partidos dos Trabalhadores (PT), nosso sistema partidário é inorgânico, falso e frouxo”, resumiu. Outra sequela do golpe, afirmou ele, foi ter ferido a corrente do construtivismo institucional.
As outras duas correntes, liberalismo culturalista e estruturalismo sociológico, estariam, de acordo com o cientista político, “na base mais profunda da crise que o país enfrenta nesse momento”.
O liberalismo culturalista nasce no século XIX, com o livro “A Província” de Aureliano Cândido Tavares Bastos e defende a instalação da ordem liberal no Brasil como agenda de modernização. Essa corrente tem uma visão de história mais “fechada”, a partir do entendimento de que algumas restrições organizacionais são difíceis de serem superadas em razão da herança ibérica. “Portugal seria a razão do atraso brasileiro, o que é uma total loucura”, avalia Teixeira. Os autores Tavares Bastos, Ruy Barbosa, Sérgio Buarque de Holanda, Raymundo Faoro e Roberto da Matta fariam parte dessa corrente teórica, cuja pergunta central seria, “por que o Brasil não conseguiu ser os EUA?”.
O estruturalismo sociológico floresce em São Paulo, em especial na Universidade de São Paulo (USP), e dá voz à esquerda brasileira. O eixo da atenção dos intelectuais, aqui, se move da América do Norte para a Europa, com o uso da teoria social europeia para explicar o Brasil.
Apesar de crer no “mercado universal de ideias” para as ciências avançar, Teixeira acredita que é necessário “metabolizar”, ou seja, não aplicar automaticamente as proposições que são formuladas em outros contextos. “O estado intelectual do país pós-golpe militar é dominado pelo colonialismo intelectual. E isso bloqueia a identificação real dos problemas nacionais e a sua solução”, avaliou. Seus principais autores, mencionou, foram Caio Prado Junior, Florestan Fernandes, Fernando Henrique Cardoso.
O professor e procurador do trabalho, Pedro Lino de Carvalho Júnior, agradeceu a contribuição de Teixeira por apresentar um panorama denso e complexo do pensamento social, “não apenas na perspectiva de historicizar, mas fundamentalmente de contrastá-los com os desafios da contemporaneidade brasileira”. Ele falou sobre outro autor, também objeto de estudo de Teixeira, Roberto Mangabeira Unger, filósofo e teórico social brasileiro, professor de Havard e ex-ministro-chefe da Secretaria de Assuntos Estratégicos do país entre 2007 e 2009.
“É um pensador interessante, principalmente para os desafios que estão ao nosso horizonte”, observou Lino. Em sua opinião, Unger aposta na vitalidade brasileira e em sua institucionalização. “Como profissional de direito, achei interessante o destaque que ele dá ao potencial democratizante do direito. Nós sabemos que o direito, de forma geral, tem um trabalho de controle social, repressão, mas, em certa medida, Unger enxerga possibilidades emancipatórias”, logo, afirmou o procurador, o direito seria capaz de oferecer instrumentos de transformação, “com o jurista trabalhando como um auxiliar técnico do cidadão”.
Unger, disse Lino, tem um olhar apaixonado pelo país, com exposições que não se limitam a dar diagnósticos, mas também de fornecer alternativas para o Brasil. “Com alguma pretensão, Unger quer construir uma heresia universalizante a partir do Brasil. Ele acredita que os grandes países continentais periféricos – Brasil, Índia, Rússia, China-, podem ser o espaço de um experimentalismo e o Brasil é que tem mais elementos que favorecem essa experimentação”, falou Lino. Ele também descreveu as grandes apostas de Unger, que abrangem capacitação, restruturação e reconstrução do estado, da economia, da política e das instituições.
O professor de filosofia José Crisóstomo de Souza abordou diferentes maneiras para interpretar o Brasil. A mais literal, em sua opinião, utilizaria recursos de sociologia, história e antropologia para fazer um retrato do país e descrever suas marcas constitutivas. De forma semelhante aos colegas do ciclo de debates, ele também avalia que há uma repetição de experiências externas “que não nos contemplam”.
Em sua opinião, as narrativas da modernidade consideram “eminentemente centrais” a Europa e o Atlântico Norte. “O que acontece fora é uma espécie de reboco, atraso, pálida imitação tosca que simplesmente serve para encalço desse modelo”, argumento que Crisóstomo discorda. “Como habitante do hemisfério sul, eu entendo que a modernidade tem duas faces e o que acontece na periferia do mundo é tanto constitutivo da modernidade quanto o que acontece no atlântico norte”, disse.
Ele defendeu que essas interpretações do Brasil não devem se limitar às ciências sociais, ou ao campo filosófico, elas devem ser vistas também como romances de um futuro nacional, uma tentativa de “pintar a cena do mundo com um colorido nosso”.
Evento preparatório
O ciclo de debates foi um evento preparatório para o Congresso de Pesquisa, Ensino e Extensão da UFBA 2017, que ocorrerá entre os dias 16 e 18 de outubro deste ano. As três sessões do evento buscaram promover reflexões políticas e qualificar os debates sobre a crise atual brasileira.
Confira as reportagens das outras duas sessões do ciclo de debates:
1ª parte do ciclo com os professores Ladislau Dowbor (PUC) e Carlos Brandão (UFRJ);
2ª parte do ciclo com o economista Bresser Pereira
Fonte: EdgarDigital